Afinal, o que é, para Descartes, a vida boa, também chamada vida feliz? Impõe-se distinguir aqui o que constitui a energia imediata e íntima desta felicidade, ou antes, da «beatitude natural» [à Élisabeth, 4 de Agosto de 1645, AT, IV, 267, 24], e o que pode servir, a título de circunstância exterior, para a diversificar ou, em certo modo, para lhe reforçar o desfrutamento. Para o primeiro factor, a definição cartesiana, depois de algumas variações significativas, fixou-se neste ponto: não podendo a «beatitude natural» consistir senão num perfeito contentamento de espírito, ou, por outras palavras, numa perfeita satisfação interior, o princípio só pode encontrar-se no uso mesmo das nossas faculdades, particularmente no da vontade ou do livre-arbítrio, que se estende a todas as outras. Com efeito, nada nos poderá dar uma tal satisfação, senão a consciência de ter agido em cada circunstância da melhor forma ao nosso alcance; e nada nos pode conduzir mais seguramente do que a firme e constante resolução de buscar, executar e, portanto, atingir em cada caso uma tal optimização. Esta resolução caracteriza a «verdadeira generosidade» [Passions, art. 153] onde se encontra «a chave de todas as outras virtudes» [art. 161]. Quanto às circunstâncias exteriores, que «dependem da fortuna», não se trata de lhes retirar qualquer importância, ou de as reduzir a «ocasiões de virtudes». O caso é que «um homem bem-nascido», que não é doente, a quem nada falta e que, desse modo, é tão sábio e virtuoso como um outro que é pobre, enfermiço e disforme, pode gozar de um contentamento mais perfeito que ele» [à Élisabeth, 4 de Agosto de 1645, AT, IV, 264]. Mas isto não impede, acrescenta Descartes, que «os mais pobres e os mais desgraçados da fortuna ou da natureza possam viver inteiramente contentes e satisfeitos»: porque os desejos de que depende tal satisfação podem também eles ser regulados ou re-orientados para «coisas que dependem de nós» [Passions, art. 144], de tal maneira que estas circunstâncias exteriores se encontram remetidas às suas contingências.
Denis Kambouchner, «Descartes (1596-1650): felicidade e utilidade», História Crítica da Filosofia Moral e Política.