Quarta-feira, 21 de Outubro de 2009

O problema da política não é o de imitar ou de reproduzir o laço familiar mas o de o distender cada vez mais

 


Aliás, a única diferença assinalável entre a moral e a política
é que a moral reflecte e aprecia os actos, os caracteres e os afectos numa esfera de pessoas que nos são muito próximas, enquanto a política nos ensina a situar-nos, fantasmaticamente sem dúvida, num gigantesco sistema de acções e de interesses. Por outro lado, como não ver que o exemplo do sentimento paternal constitui implicitamente uma objecção à concepção paternalista do poder político, tal como se encontra no Patriarcha de Filmer (1680, publicação póstuma)? O problema da política não é o de imitar ou de reproduzir o laço familiar mas o de o distender cada vez mais.

 

Jean-Pierre Cléro, «Hume (1711-1776): a ciência da natureza humana», em História Crítica da Filosofia Moral e Política.

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Segunda-feira, 12 de Outubro de 2009

... na verdadeira generosidade se encontra a chave de todas as outras virtudes...


Afinal, o que é, para Descartes, a vida boa, também chamada vida feliz? Impõe-se distinguir aqui o que constitui a energia imediata e íntima desta felicidade, ou antes, da «beatitude natural» [à Élisabeth, 4 de Agosto de 1645, AT, IV, 267, 24], e o que pode servir, a título de circunstância exterior, para a diversificar ou, em certo modo, para lhe reforçar o desfrutamento. Para o primeiro factor, a definição cartesiana, depois de algumas variações significativas, fixou-se neste ponto: não podendo a «beatitude natural» consistir senão num perfeito contentamento de espírito, ou, por outras palavras,
numa perfeita satisfação interior, o princípio só pode encontrar-se no uso mesmo das nossas faculdades, particularmente no da vontade ou do livre-arbítrio, que se estende a todas as outras. Com efeito, nada nos poderá dar uma tal satisfação, senão a consciência de ter agido em cada circunstância da melhor forma ao nosso alcance; e nada nos pode conduzir mais seguramente do que a firme e constante resolução de buscar, executar e, portanto, atingir em cada caso uma tal optimização. Esta resolução caracteriza a «verdadeira generosidade» [Passions, art. 153] onde se encontra «a chave de todas as outras virtudes» [art. 161]. Quanto às circunstâncias exteriores, que «dependem da fortuna», não se trata de lhes retirar qualquer importância, ou de as reduzir a «ocasiões de virtudes». O caso é que «um homem bem-nascido», que não é doente, a quem nada falta e que, desse modo, é tão sábio e virtuoso como um outro que é pobre, enfermiço e disforme, pode gozar de um contentamento mais perfeito que ele» [à Élisabeth, 4 de Agosto de 1645, AT, IV, 264]. Mas isto não impede, acrescenta Descartes, que «os mais pobres e os mais desgraçados da fortuna ou da natureza possam viver inteiramente contentes e satisfeitos»: porque os desejos de que depende tal satisfação podem também eles ser regulados ou re-orientados para «coisas que dependem de nós» [Passions, art. 144], de tal maneira que estas circunstâncias exteriores se encontram remetidas às suas contingências.

 

Denis Kambouchner, «Descartes (1596-1650): felicidade e utilidade», História Crítica da Filosofia Moral e Política.

 
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Quarta-feira, 30 de Setembro de 2009

... o homem é simultaneamente um lobo ou um deus para o outro homem...

«A passividade e a servidão não vêm apenas do funcionamento dos nossos afectos mas da nossa relação com as demais realidades da natureza, particularmente com as que, por nos estarem mais perto e serem mais semelhantes, são simultaneamente as mais úteis ou as mais ameaçadoras: os outros homens. Como Hobbes (Carta dedicatória do Citoyen), Espinosa poderia dizer que o homem é simultaneamente um lobo ou um deus para o outro homem [Lagrée, 1995]. Se prefere pôr o acento na segunda formulação, não é por ignorar os malefícios de que os homens são capazes relativamente a seus semelhantes, é porque toda a sua filosofia é orientada para o dinamismo positivo da vida. Cada um de nós tem evidente necessidade dos outros para fazer face às necessidades elementares da vida [Espinosa, TTP, V], mas, mesmo satisfeitas estas, o outro homem, e mais particularmente o homem livre, é um auxiliar insubstituível para bem viver. A vida comum garante num quadro colectivo a utilidade comum e a segurança, mas mais ainda, ao favorecer a permutação de toda a espécie: troca de bens, de serviços, de pensamentos — a sociedade, e particularmente a sociedade democrática, dilata o campo perceptivo de cada um, estimula a imaginação, abre um campo mais vasto e mais livre aos avanços da razão e contrabalança as tendências obsessivas dos afectos passivos. Contra os aristocratas do pensamento, os defensores de um saber elitista e reservado, Espinosa defende a tese segundo a qual é levando em conta muitas ideias que se chega a ter posições razoáveis, que é confrontando livremente as opiniões, no respeito das leis e da segurança do Estado, que as opiniões extremas se anulam e que uma posição sensata emerge do debate. Assim, «nada é mais útil ao homem do que um homem a viver sob a conduta da razão» [E, IV, 35, sc. 1], mas também é na cidade que o homem livre tem maior possibilidade de se encontrar.»

Jacqueline Lagrée, «Espinosa (1632-1677): o caminho da liberdade e da bem-aventurança», História Crítica da Filosofia Moral e Política.

 
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Terça-feira, 29 de Setembro de 2009

William Safire (1929-2009)

 

Cronista e escritor, colunista político do New York Times (Nova Iorque, 17.12.1929 – Rockville, Maryland, 27.9.2009) galardoado, em 1978, com o Prémio Pulitzer. Iniciou a sua carreira como repórter do The New York Herald Tribune. Produtor de rádio e televisão, conseguiu ardilosamente juntar Nixon e Krutschev num debate realizado em Moscovo, em 1959. Ligado à campanha presidencial de Nixon, escreveu diversos dos seus discursos como presidente. Em 1975, escreveu as memórias desses anos no volume Before the Fall. Organizador de dicionários e antologias, William Safire é autor de quatro romances: Full Disclosure (1978), Freedom: A Novel of Abraham Lincoln and the Civil War (1987), Sleeper Spy (1995) e Scandalmonger (2000). Membro da administração dos Prémios Pulitzer desde 1995, Safire manteve ainda, a partir de 1979, uma coluna semanal no The New York Times Magazine, intitulada «On Language», onde abordou questões de gramática, uso e etimologia, textos que depois foi reunindo em diversos livros.

publicado por annualia às 10:19
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Quinta-feira, 24 de Setembro de 2009

... as causas da união, pelo contrário, são o medo e a guerra...

 

Tal é a razão da atitude maquiavélica face ao otium filosófico. No seio do estado de guerra permanente que caracteriza as relações entre os povos, não há lugar para o lazer contemplativo. Este não só faz perder aos cidadãos a consciência dos perigos latentes, não só contribui para a perda de energias comunais, como, ao incitar o retraimento sobre si próprio, participa no crescendo das ambições particulares que são, para Maquiavel, um sintoma da corrupção pública. Lazer e desunião são portanto correlativos, «[...] as causas da desunião das repúblicas não são as mais das vezes a ociosidade e a paz (l’ozio e la pace); as causas da união, pelo contrário, são o medo e a guerra. Se, portanto, os habitantes de Véiès [que não cessavam de ofender os Romanos com ataques e insultos] tinham sido sábios, mais o foram quando, vendo Roma desunida, desviaram o pensamento da guerra e procuraram oprimir os Romanos com a arte da paz (com l’arti della pace).» [D, II, 25, pp. 353-354; cf. igualmente AO, V, p. 1049: «A bravura (virtù) propicia a paz aos Estados/ da paz vem depois/ a ociosidade (ozio) que destrói as terras e as casas.»]


Michel Senellart, «Maquiavel (1469-1527): o ethos político de grandeza e de liberdade», em História Crítica da Filosofia Moral e Política

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Quarta-feira, 23 de Setembro de 2009

A exaltação da liberdade

 

A exaltação da liberdade e de muitas virtudes republicanas ligadas a esta mesma liberdade tem origem naquilo a que chamamos a crise e a transição do século XIV para o século XV. Contudo, será falso pensar que, uma vez atingidos os seus objectivos (a defesa da liberdade contra a tirania dos Visconti, senhores de Milão), ela se esgotara. Este movimento produziu efeitos sobre toda a vida espiritual da cidade e do humanismo em geral, promovendo uma filosofia activa e social que encontramos tanto nos escritos políticos como nos escritos éticos e pedagógicos. Tal filosofia tem as suas raízes profundas na concepção romana da virtude. Esta não era já uma disposição inata da alma, mas um ponto de chegada para todos os que se comprometiam a um trabalho perseverante. Mas, mais importante ainda, ela não se considera apenas como um bem individual, mas como um degrau da acção social. Esta alta avaliação da virtude, nunca dissociada da posse dos studia humanitatis, encontra na pedagogia humanista um dos seus pontos culminantes, com Pier Paolo Vergerio (1370-1444). Esta exaltava o valor da cultura e, no interior desta, o da filosofia. Com efeito, as outras disciplinas são chamadas liberais, porque convêm aos homens livres, «mas a filosofia é liberal no sentido em que o seu estudo liberta os homens» [Garin, 1971, p. 94]. A sua conexão com a eloquência e a arte da persuasão confirma, por conseguinte, a dimensão sociopolítica em que é concebida.


Domenico Taranto, «O desabrochar do Humanismo italiano: vida activa ou vida contemplativa?», em História Crítica da Filosofia Moral e Política

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Segunda-feira, 21 de Setembro de 2009

... a partir de que momento é legítimo derrubar um príncipe indigno desse nome

 «A ordem moral e política funda-se na lei divina, comunicada aos homens sob a dupla forma de lei natural e de ordem das naturezas. Na lei temporal, apenas é justo ou legítimo o que foi derivado pela razão humana da lei eterna [Agostinho, De Libero arbitrio, I, v, 13, citado por Tomás de Aquino, Suma Teológica, I-II 93, 3]. É neste sentido que cumpre interpretar a autoridade da Escritura: «Todo o poder vem de Deus.» O contra-senso clássico (interpretação absolutista da época clássica) consiste em dizer que toda a autoridade é de direito divino, quando esta frase significa, pelo contrário, que não há poder legítimo senão o que (verdadeiramente) procede de Deus: para exigir obediência, a própria autoridade deve obedecer à lei eterna.
É por isso que é legítimo não obedecer aos injustos. Para Tomás de Aquino, a lei exprime por essência a justiça no finito: se ela não é justa, nem sequer é uma lei; não a executar não é desobedecer, mas simplesmente reconhecer que ela não existe. Nos séculos XIV e XV esta reflexão irá até aos fundamentos do exercício do poder, numa casuística do tiranicídio, para decidir a partir de que momento é legítimo derrubar um príncipe indigno desse nome.»

Oivier Boulnois, «Os escolásticos, Boaventura (c. 1220-1271), Tomás de Aquino (1225-1274), Duns Escoto (1265-1308): felicidade, lei natural e pobreza» em História Crítica da Filosofia Moral e Política.

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Quinta-feira, 17 de Setembro de 2009

O discurso antigo da felicidade

 

 «Apresentar as morais antigas como um bloco homogéneo é seguramente impossível. Todavia, pode-se destacar alguns elementos comuns constitutivos: a virtude é sempre concebida como uma excelência que depende de nós; trata-se de um equilíbrio segundo a medida que requer um saber; o sábio vive plenamente a sua felicidade no momento presente; a sabedoria implica domínio de si e independência; a sabedoria comporta o sentido da comunidade e o cultivo da amizade.
(...)

Os Antigos não separaram virtude e felicidade, sabedoria, medida, felicidade e utilidade própria; bem pelo contrário, conceberam a relação entre virtude e felicidade, entre excelência e contentamento, como um vínculo analítico quer baste ser verdadeiramente feliz para ser virtuoso, como nos epicuristas, quer a virtude seja a própria forma da felicidade e a sua própria recompensa, como nos estóicos. A felicidade é uma tarefa da consciência: não é feliz aquele que não acredita sê-lo; seria igualmente infeliz aquele que não se contentasse com o que tem e com o que é, ainda que fosse dono do mundo inteiro. A primeira condição da felicidade consiste, por conseguinte, em conhecer-se a si mesmo para saber exactamente o que é o si mesmo e o que está em si, o uso das suas representações. «Só o sábio está satisfeito com o que tem. Todo aquele que não é sábio é atormentado pelo desgosto de si.» [Séneca, Cartas a Lucílio, 9, 22.]
A sabedoria antiga constitui um modelo de sabedoria feliz que não é nem elitista nem egoísta, mas proposta a todos, do imperador ao escravo, e a cada um na sua vida quotidiana seja por ocasião de encontros fortuitos, como os de Sócrates na ágora, seja como resultado de um prolongado exercício, como na escola de Pitágoras. O cuidado de si não é incompatível com a intervenção na vida política — vêmo-lo desde Platão, a caminho de Siracusa, até Plotino, pretendendo erigir uma cidade de sábios, Platonópolis — mas a busca de equilíbrio e de desabrochamento pessoal permanecem aí de forma preponderante. Não poderíamos pensar separadamente a moral e a política, mas a política, especialmente através da educação, apenas faz por alcançar as pré-condições da vida feliz.»

 

Jacqueline Lagrée, «O discurso antigo da felicidade»

em História Crítica da Filosofia Moral e Política

 

 

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Quarta-feira, 16 de Setembro de 2009

História das Ideias: moral e política

 

 

No calor da discussão política e ideológica, própria do momento que atravessamos, esquecemos muitas vezes que expressões como «bem comum», «bem-estar», «felicidade», «interesse» ou «utilidade», tão repetidas, têm uma história, e que o seu significado se altera de acordo com diferentes perspectivas.

 

É essa história e a discussão que, ao longo dos séculos, lhe está subjacente, que constitui o objecto da História Crítica da Filosofia Moral e Política.

Nela se observam as rupturas e as continuidades nesse longo debate que está na origem de muitas das diferenciações que hoje observamos nas formações partidárias e nos actores da política.

 

De Platão a John Rawls, passando por Maquiavel, Hobbes, Adam Smith, Rousseau, Nietzsche, Max Weber ou Levinas, entre muitos outros, esta História Crítica da Filosofia Moral e Política reúne um conjunto excepcional de estudos acessíveis, constituindo um instrumento particularmente útil e uma referência indispensável para o entendimento da história das ideias.

 

 

 

 

    História Crítica da Filosofia Moral e Política

     direcção de Alain Caillé, Christian Lazzeri

e Michel Senellart

 

coordenação da edição portuguesa:

Manuel da Costa Freitas

 

 

 

     Informações mais detalhadas AQUI.

 

 

 

 

 

publicado por annualia às 07:34
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Quinta-feira, 25 de Junho de 2009

Alexis de Tocqueville (1805-1859)

A propósito da passagem, em Abril passado, dos 150 anos da morte de Tocquville, divulgamos de seguida um texto incluído no último volume impresso de Annualia.

 

Alexis de Tocqueville
por Paulo Tunhas
da Universidade Fernando Pessoa

Não há, apesar das suas aporias, aparentes contradições e efectiva complexidade, ou talvez por causa disso mesmo, melhor guia para entender os tempos presentes do que a obra de Alexis de Tocqueville (1805-1859). Tocqueville foi certamente quem melhor diagnosticou a tendência geral da evolução das sociedades ocidentais, uma tendência marcada pelo advento da democracia e do igualitarismo, em contraste com a diferenciação aristocrática dos tempos precedentes à revolução francesa, mas anunciada já pela centralização administrativa encetada pela monarquia.

 

O método tocquevilliano, tanto nos dois tomos de De la démocratie en Amérique (1835, 1840) como em L’Ancien Régime et la Révolution (1856), é um método de contrastes. Contraste entre as «épocas aristocráticas» e as «épocas democráticas», entre a liberdade e o despotismo, entre a paixão da liberdade e a paixão da igualdade, entre a estabilidade e a instabilidade, entre os Estados Unidos e a França. No centro, apesar de nomeada apenas a espaços, a Inglaterra, aristocrática e livre, mas contendo em si elementos de democracia, responsável, como Tocqueville insiste, por várias tradições que os Estados Unidos viriam a renovar.

Contrastes (bem como semelhanças) encontram-se não apenas no método como no objecto estudado: as sociedades aristocráticas são sociedades de contrastes entre as várias «classes» ou «castas», as sociedades democráticas, adversárias da diversidade, tudo homogeneízam e assemelham. É sobretudo nestas que a atenção de Tocqueville se concentra: as sociedades democráticas, em virtude do impulso centralizador que lhes é intrínseco, e que Tocqueville analisa em detalhe, procedem a uma uniformização e a uma igualitarização de toda a vida comum, que é acompanhada por uma regimentação tendencialmente integral da vida individual e por um concomitante isolamento dos indivíduos, separados de toda a vida política. Movimento geral ao qual a própria linguagem – cada vez mais abstracta e divorciada de qualquer referência concreta – não escaparia. A linguagem abstracta, favorecendo as ideias gerais, é ela própria um poderoso veículo de uniformização e de desatenção ao particular, de substituição da sociedade efectiva por uma sociedade imaginária, esplendidamente indiferente à rugosidade da realidade. A arte dos povos democráticos – Tocqueville tem sobretudo em vista o romantismo francês – exprime na perfeição esse movimento de desrealização do singular e o fanatismo propagandístico que lhe é concomitante. A colocar ainda na lista dos malefícios da uniformização, a perda de qualidade e de individualidade dos artefactos, bem como a degradação do homem, que não se pertence já a si mesmo mas à profissão que escolheu. O próprio conceito de honra, na exacta medida em que supõe, como condição de possibilidade da sua existência, a divisão estratificada dos grupos sociais, tenderia a desaparecer em virtude da uniformização dos comportamentos.

A transformação da sociedade numa superfície plana, inerme e indiferenciada, contraposta a um Estado uno e senhor de todo o poder, mas representando a maioria, exprime o resultado de um movimento inevitável dos povos em direcção à igualdade. «Despotismo democrático»: Tocqueville forja a expressão com toda a prudência, servindo-se do vocabulário tradicional. A coisa é nova, mas Tocqueville recusa-se, em parte por aristocrática desconveniência com a linguagem abstracta, a dar-lhe um nome absolutamente novo. Em todo o caso, o significado é claro: movimento simultâneo de despossessão política do indivíduo e de máxima privatização das suas acções, sabiamente reguladas por um poder tutorial (infantilizador, poder-se-ia acrescentar) e omnipresente, um poder tutelar «absoluto, detalhado, regular, previdente e doce»; paixão servil pelo funcionarismo público (o «desejo universal e imoderado das funções públicas»); glacial homogeneidade e indistinção de indivíduos paradoxalmente isolados uns dos outros, ao mesmo tempo semelhantes e reciprocamente surdos e indiferentes, numa similaridade incomunicante; imersão da sociedade numa mediocridade que tudo nivela; massificação (é, de facto, a palavra que convém) do gosto; tirania da opinião pública; criação de uma sensibilidade universal e untuosa, exprimindo um amor abstracto pela humanidade, um lirismo administrativo dos sentimentos.

Esta tendência natural das sociedades democrático-igualitárias para o despotismo democrático, sendo poderosa, não é, no entanto, fatal. De la démocratie en Amérique mostra como uma série de dispositivos – a descentralização administrativa (compatível com uma necessária centralização governamental), bem como a criação de um conjunto de entidades mediadoras entre o indivíduo e o Estado, e a própria religião (separada do poder político) – pode servir de antídoto ao movimento indiferenciador da democracia e preservar uma liberdade em risco. O essencial reside na divisão do poder social, uma divisão que é natural nas sociedades aristocráticas, mas que manifestamente repugna às sociedades democráticas e niveladoras. A divisão do poder social é a operação fundamental da liberdade, e Tocqueville explora as suas possibilidades em detalhe. O amor da indivisão dos poderes é o amor despótico por excelência, que traz consigo um gosto perverso e funcionário pela uniformidade. Trata-se de procurar a todo o custo que a paixão da liberdade sobreviva à torrente igualitária (notando-se, no entanto, que a paixão da igualdade é ela própria dupla: simultaneamente viril – e, assim, podendo dar aos homens o gosto das instituições livres -- e degradada). Só assim o despotismo larvar do corpo social democrático poderá ser combatido.

Os Estados Unidos dar-nos-iam exactamente o exemplo, necessariamente incerto, imperfeito e perecível, de uma tal preservação da liberdade, que constituiria a «ciência política» (no sentido tocquevilliano de regra da acção pública) dos povos democráticos livres. Convém efectivamente sublinhar este aspecto: Tocqueville não diz nunca que a democracia é, em si, incompatível com a liberdade: apenas diz que, deixada à sua marcha natural, ela tende a obliterar a paixão da liberdade que igualmente a constitui e rapidamente se torna inimiga da liberdade. A liberdade que sobreviverá nela, que ela recriará ao seu modo, será o produto não do instinto igualitário mas da arte humana, da «acção lenta e tranquila da sociedade sobre si mesma», e manifestar-se-á, entre outras coisas, na actividade exercida pelas associações de cidadãos, pela imprensa livre (amada sobretudo pelos males que evita) ou pela autonomia do poder judiciário. A tendência à divisão e a tendência à união devem coexistir, em estado de equilíbrio, e o federalismo exprime esse equilíbrio. São ainda indispensáveis à arte da liberdade a defesa dos poderes comunais, essenciais na criação do espírito de liberdade (o espírito, tal como os costumes o traduzem, é mais importante ainda do que as leis) e o respeito pelos formalismos e pelos direitos individuais. Tal arte – uma arte que muito deve à herança inglesa da liberdade -- consistirá, entre outras coisas, em fazer com que o homem não mergulhe absolutamente na esfera privada, na esfera do individualismo, e venha a interessar-se, não por instinto, mas por reflexão, pela coisa pública. O célebre «interesse bem entendido» de que fala Tocqueville, o amor esclarecido de si mesmo («doutrina pouco elevada, mas clara e segura»), servindo de antídoto ao individualismo democrático, participa desta arte.

Numa língua de uma perfeita beleza e extraordinária acuidade, cruzando a Filosofia política – uma filosofia política alicerçada numa antropologia das paixões --, a História e a Sociologia, dotado de uma excepcional capacidade prognóstica, Tocqueville é, como se disse anteriormente, o melhor guia possível para a sociedade contemporânea. Ninguém como ele previu (e antecipadamente descreveu) o advento de um Estado tutelar e minuciosamente inquiridor dos actos privados dos indivíduos – não de uns poucos, como nas tiranias antigas, mas de todos --, um Estado preceptor, cioso de decidir por nós o que nos convém e desconvém, o benéfico e o contraproducente, sem ter em conta os nossos desejos e vontades. Sem poder adivinhar os horrores mais radicais do século xx, Tocqueville pôde, no entanto, conceber o que mais se assemelha ao totalitarismo no contexto dos doces humores democráticos: a abdicação da liberdade de pensar e agir, a subordinação maciça à «opinião pública», a vitória da servidão inspirada pela paixão absorvente da igualdade, muito mais poderosa do que a paixão da liberdade. Isso e o esquecimento militante do passado e da tradição em benefício exclusivo de um presente imediato e irreflectido, fechando cada homem no interior do seu próprio coração, comandado apenas pelo desejo «ardente, tenaz, contínuo» (pensar-se-ia ler Hobbes) de avançar; e, ao mesmo tempo, uma «indiferença completa e brutal em relação ao futuro». Mas pôde igualmente, sobretudo no seu retrato dos Estados Unidos – simultaneamente indício dos tempos a vir e parcial solução para os males desses tempos --, sugerir a possibilidade de, no seio da democracia, a humanidade poder manter um módico de liberdade resistente à paixão da igualdade. Se o caminho para a igualdade é inexorável, convém a todo o custo que lutemos para minimizar as suas mais terríveis consequências. No fim de contas, o desenvolvimento dos costumes e das instituições democráticas é o único meio que nos resta para permanecermos livres. Um retorno – impossível, de resto -- à aristocracia, obrigar-nos-ia a algo inaceitável: «fundar a desigualdade em princípio».

A acabar. Uma evocação, mesmo que breve, de Tocqueville, não pode deixar passar em silêncio esse livro maravilhoso, os Souvenirs (escritos em 1850-1851 e publicado postumamente), onde são retratadas as jornadas de 1848 e a sua passagem pelo Ministério dos Estrangeiros sob Luís-Napoleão. Talvez mais ainda que nas outras obras, toda a sensibilidade de Tocqueville à maneira como as instituições do passado vão perdendo sentido, ou se vêem afectadas de sentidos novos, se exibe na perfeição. Um livro que não contém uma só linha que seja banal e não ilumine um ou outro aspecto da história e dos motivos da acção humana.


 

publicado por annualia às 15:32
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Sábado, 20 de Junho de 2009

Ralf Dahrendorf (1929-2009)

Sociólogo, politólogo e economista alemão (Hamburgo, 1.5.1929 - Colónia, 18.6.2009). Licenciou-se em Filosofia, Filologia Clássica e Sociologia na Universidade de Hamburgo e, em 1952, doutorou-se em Filosofia e Estudos Clássicos na mesma Universidade. Entre 1953 e 1954 realizou uma pós-graduação na London School of Economics. Foi professor de Sociologia nas Universidades de Hamburgo (1957-1960), Tubinga (1960-1964) e Constança (1966-1969). Em 1969, foi eleito deputado ao Parlamento alemão pelo Partido Democrático Livre, una formação política de índole liberal, e fez parte do primeiro governo de Willy Brandt, como secretário de Estado no Ministério dos Negócios Estrangeiros. Em 1970, foi nomeado Comissário Europeu em Bruxelas. Continuou , apesar disso, a sua carreira académica, ocupando os cargos de director da London School of Economics (1974-1984), sendo decano do St. Anthony´s College, um centro de pós-graduação da Universidade de Oxford orientado para os estudos internacionais. Em 1988 adoptou a nacionalidade britânica e, em 1993, foi feito Lorde pela Rainha Isabel II, com o título de «Barão Dahrendorf of Clare Market in the City of Westminster». Desde então, integrou a Câmara dos Lordes britânica, sem no entanto pertencer a qualquer partido. Desde 2005 foi professor na Faculdade de Ciências Sociais da Universidade de Berlim.
Entre os seus estudos destacam-se os seus contributos para as teorias do conflito social, que abordam questões como a necessidade de integração e ordem nas sociedades contemporâneas, defendendo o conceito de conflito como factor de mudança social. Insistiu na necessidade da Europa enfrentar os problemas que se lhe colocam, como os do Estado social, ou do bem-estar, e o desemprego. Ralf Dahrendorf recebeu mais de uma vintena de doutoramentos honoris causa por universidades do Reino Unido, da Irlanda, Bélgica, Itália e EUA, entre outras, e é autor de uma extensa obra escrita, que inclui Class and Class Conflict in an Industrial Society (1959), Conflict after Class (1967), Society and Democracy in Germany (1967), The New Liberty (1975), Life Chances (1979). Foi distinguido com o Prémio Príncipe das Astúrias, em 2007.
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Sexta-feira, 13 de Fevereiro de 2009

Introdução à Política. O Poder na História


O Poder na História é o título do primeiro volume da Introdução à Política
de António Marques Bessa e Jaime Nogueira Pinto.
Nele se observa e documenta a evolução das diversas concepções de Poder e de Política, desde as remotas teocracias orientais, a Grécia antiga e a Roma imperial até ao «Tempo das Revoluções» --  a Inglesa de 1640, a Francesa de 1789 e a Russa de 1917.

Uma edição Verbo.

 

*Capa de Magda Macieira Coelho.

publicado por annualia às 16:30
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