Aliás, a única diferença assinalável entre a moral e a política é que a moral reflecte e aprecia os actos, os caracteres e os afectos numa esfera de pessoas que nos são muito próximas, enquanto a política nos ensina a situar-nos, fantasmaticamente sem dúvida, num gigantesco sistema de acções e de interesses. Por outro lado, como não ver que o exemplo do sentimento paternal constitui implicitamente uma objecção à concepção paternalista do poder político, tal como se encontra no Patriarcha de Filmer (1680, publicação póstuma)? O problema da política não é o de imitar ou de reproduzir o laço familiar mas o de o distender cada vez mais.
Jean-Pierre Cléro, «Hume (1711-1776): a ciência da natureza humana», em História Crítica da Filosofia Moral e Política.
Afinal, o que é, para Descartes, a vida boa, também chamada vida feliz? Impõe-se distinguir aqui o que constitui a energia imediata e íntima desta felicidade, ou antes, da «beatitude natural» [à Élisabeth, 4 de Agosto de 1645, AT, IV, 267, 24], e o que pode servir, a título de circunstância exterior, para a diversificar ou, em certo modo, para lhe reforçar o desfrutamento. Para o primeiro factor, a definição cartesiana, depois de algumas variações significativas, fixou-se neste ponto: não podendo a «beatitude natural» consistir senão num perfeito contentamento de espírito, ou, por outras palavras, numa perfeita satisfação interior, o princípio só pode encontrar-se no uso mesmo das nossas faculdades, particularmente no da vontade ou do livre-arbítrio, que se estende a todas as outras. Com efeito, nada nos poderá dar uma tal satisfação, senão a consciência de ter agido em cada circunstância da melhor forma ao nosso alcance; e nada nos pode conduzir mais seguramente do que a firme e constante resolução de buscar, executar e, portanto, atingir em cada caso uma tal optimização. Esta resolução caracteriza a «verdadeira generosidade» [Passions, art. 153] onde se encontra «a chave de todas as outras virtudes» [art. 161]. Quanto às circunstâncias exteriores, que «dependem da fortuna», não se trata de lhes retirar qualquer importância, ou de as reduzir a «ocasiões de virtudes». O caso é que «um homem bem-nascido», que não é doente, a quem nada falta e que, desse modo, é tão sábio e virtuoso como um outro que é pobre, enfermiço e disforme, pode gozar de um contentamento mais perfeito que ele» [à Élisabeth, 4 de Agosto de 1645, AT, IV, 264]. Mas isto não impede, acrescenta Descartes, que «os mais pobres e os mais desgraçados da fortuna ou da natureza possam viver inteiramente contentes e satisfeitos»: porque os desejos de que depende tal satisfação podem também eles ser regulados ou re-orientados para «coisas que dependem de nós» [Passions, art. 144], de tal maneira que estas circunstâncias exteriores se encontram remetidas às suas contingências.
Denis Kambouchner, «Descartes (1596-1650): felicidade e utilidade», História Crítica da Filosofia Moral e Política.
«A passividade e a servidão não vêm apenas do funcionamento dos nossos afectos mas da nossa relação com as demais realidades da natureza, particularmente com as que, por nos estarem mais perto e serem mais semelhantes, são simultaneamente as mais úteis ou as mais ameaçadoras: os outros homens. Como Hobbes (Carta dedicatória do Citoyen), Espinosa poderia dizer que o homem é simultaneamente um lobo ou um deus para o outro homem [Lagrée, 1995]. Se prefere pôr o acento na segunda formulação, não é por ignorar os malefícios de que os homens são capazes relativamente a seus semelhantes, é porque toda a sua filosofia é orientada para o dinamismo positivo da vida. Cada um de nós tem evidente necessidade dos outros para fazer face às necessidades elementares da vida [Espinosa, TTP, V], mas, mesmo satisfeitas estas, o outro homem, e mais particularmente o homem livre, é um auxiliar insubstituível para bem viver. A vida comum garante num quadro colectivo a utilidade comum e a segurança, mas mais ainda, ao favorecer a permutação de toda a espécie: troca de bens, de serviços, de pensamentos — a sociedade, e particularmente a sociedade democrática, dilata o campo perceptivo de cada um, estimula a imaginação, abre um campo mais vasto e mais livre aos avanços da razão e contrabalança as tendências obsessivas dos afectos passivos. Contra os aristocratas do pensamento, os defensores de um saber elitista e reservado, Espinosa defende a tese segundo a qual é levando em conta muitas ideias que se chega a ter posições razoáveis, que é confrontando livremente as opiniões, no respeito das leis e da segurança do Estado, que as opiniões extremas se anulam e que uma posição sensata emerge do debate. Assim, «nada é mais útil ao homem do que um homem a viver sob a conduta da razão» [E, IV, 35, sc. 1], mas também é na cidade que o homem livre tem maior possibilidade de se encontrar.»
Jacqueline Lagrée, «Espinosa (1632-1677): o caminho da liberdade e da bem-aventurança», História Crítica da Filosofia Moral e Política.
Cronista e escritor, colunista político do New York Times (Nova Iorque, 17.12.1929 – Rockville, Maryland, 27.9.2009) galardoado, em 1978, com o Prémio Pulitzer. Iniciou a sua carreira como repórter do The New York Herald Tribune. Produtor de rádio e televisão, conseguiu ardilosamente juntar Nixon e Krutschev num debate realizado em Moscovo, em 1959. Ligado à campanha presidencial de Nixon, escreveu diversos dos seus discursos como presidente. Em 1975, escreveu as memórias desses anos no volume Before the Fall. Organizador de dicionários e antologias, William Safire é autor de quatro romances: Full Disclosure (1978), Freedom: A Novel of Abraham Lincoln and the Civil War (1987), Sleeper Spy (1995) e Scandalmonger (2000). Membro da administração dos Prémios Pulitzer desde 1995, Safire manteve ainda, a partir de 1979, uma coluna semanal no The New York Times Magazine, intitulada «On Language», onde abordou questões de gramática, uso e etimologia, textos que depois foi reunindo em diversos livros.
Tal é a razão da atitude maquiavélica face ao otium filosófico. No seio do estado de guerra permanente que caracteriza as relações entre os povos, não há lugar para o lazer contemplativo. Este não só faz perder aos cidadãos a consciência dos perigos latentes, não só contribui para a perda de energias comunais, como, ao incitar o retraimento sobre si próprio, participa no crescendo das ambições particulares que são, para Maquiavel, um sintoma da corrupção pública. Lazer e desunião são portanto correlativos, «[...] as causas da desunião das repúblicas não são as mais das vezes a ociosidade e a paz (l’ozio e la pace); as causas da união, pelo contrário, são o medo e a guerra. Se, portanto, os habitantes de Véiès [que não cessavam de ofender os Romanos com ataques e insultos] tinham sido sábios, mais o foram quando, vendo Roma desunida, desviaram o pensamento da guerra e procuraram oprimir os Romanos com a arte da paz (com l’arti della pace).» [D, II, 25, pp. 353-354; cf. igualmente AO, V, p. 1049: «A bravura (virtù) propicia a paz aos Estados/ da paz vem depois/ a ociosidade (ozio) que destrói as terras e as casas.»]
Michel Senellart, «Maquiavel (1469-1527): o ethos político de grandeza e de liberdade», em História Crítica da Filosofia Moral e Política
A exaltação da liberdade e de muitas virtudes republicanas ligadas a esta mesma liberdade tem origem naquilo a que chamamos a crise e a transição do século XIV para o século XV. Contudo, será falso pensar que, uma vez atingidos os seus objectivos (a defesa da liberdade contra a tirania dos Visconti, senhores de Milão), ela se esgotara. Este movimento produziu efeitos sobre toda a vida espiritual da cidade e do humanismo em geral, promovendo uma filosofia activa e social que encontramos tanto nos escritos políticos como nos escritos éticos e pedagógicos. Tal filosofia tem as suas raízes profundas na concepção romana da virtude. Esta não era já uma disposição inata da alma, mas um ponto de chegada para todos os que se comprometiam a um trabalho perseverante. Mas, mais importante ainda, ela não se considera apenas como um bem individual, mas como um degrau da acção social. Esta alta avaliação da virtude, nunca dissociada da posse dos studia humanitatis, encontra na pedagogia humanista um dos seus pontos culminantes, com Pier Paolo Vergerio (1370-1444). Esta exaltava o valor da cultura e, no interior desta, o da filosofia. Com efeito, as outras disciplinas são chamadas liberais, porque convêm aos homens livres, «mas a filosofia é liberal no sentido em que o seu estudo liberta os homens» [Garin, 1971, p. 94]. A sua conexão com a eloquência e a arte da persuasão confirma, por conseguinte, a dimensão sociopolítica em que é concebida.
Domenico Taranto, «O desabrochar do Humanismo italiano: vida activa ou vida contemplativa?», em História Crítica da Filosofia Moral e Política
«A ordem moral e política funda-se na lei divina, comunicada aos homens sob a dupla forma de lei natural e de ordem das naturezas. Na lei temporal, apenas é justo ou legítimo o que foi derivado pela razão humana da lei eterna [Agostinho, De Libero arbitrio, I, v, 13, citado por Tomás de Aquino, Suma Teológica, I-II 93, 3]. É neste sentido que cumpre interpretar a autoridade da Escritura: «Todo o poder vem de Deus.» O contra-senso clássico (interpretação absolutista da época clássica) consiste em dizer que toda a autoridade é de direito divino, quando esta frase significa, pelo contrário, que não há poder legítimo senão o que (verdadeiramente) procede de Deus: para exigir obediência, a própria autoridade deve obedecer à lei eterna.
É por isso que é legítimo não obedecer aos injustos. Para Tomás de Aquino, a lei exprime por essência a justiça no finito: se ela não é justa, nem sequer é uma lei; não a executar não é desobedecer, mas simplesmente reconhecer que ela não existe. Nos séculos XIV e XV esta reflexão irá até aos fundamentos do exercício do poder, numa casuística do tiranicídio, para decidir a partir de que momento é legítimo derrubar um príncipe indigno desse nome.»
Oivier Boulnois, «Os escolásticos, Boaventura (c. 1220-1271), Tomás de Aquino (1225-1274), Duns Escoto (1265-1308): felicidade, lei natural e pobreza» em História Crítica da Filosofia Moral e Política.
«Apresentar as morais antigas como um bloco homogéneo é seguramente impossível. Todavia, pode-se destacar alguns elementos comuns constitutivos: a virtude é sempre concebida como uma excelência que depende de nós; trata-se de um equilíbrio segundo a medida que requer um saber; o sábio vive plenamente a sua felicidade no momento presente; a sabedoria implica domínio de si e independência; a sabedoria comporta o sentido da comunidade e o cultivo da amizade.
(...)
Os Antigos não separaram virtude e felicidade, sabedoria, medida, felicidade e utilidade própria; bem pelo contrário, conceberam a relação entre virtude e felicidade, entre excelência e contentamento, como um vínculo analítico quer baste ser verdadeiramente feliz para ser virtuoso, como nos epicuristas, quer a virtude seja a própria forma da felicidade e a sua própria recompensa, como nos estóicos. A felicidade é uma tarefa da consciência: não é feliz aquele que não acredita sê-lo; seria igualmente infeliz aquele que não se contentasse com o que tem e com o que é, ainda que fosse dono do mundo inteiro. A primeira condição da felicidade consiste, por conseguinte, em conhecer-se a si mesmo para saber exactamente o que é o si mesmo e o que está em si, o uso das suas representações. «Só o sábio está satisfeito com o que tem. Todo aquele que não é sábio é atormentado pelo desgosto de si.» [Séneca, Cartas a Lucílio, 9, 22.]
A sabedoria antiga constitui um modelo de sabedoria feliz que não é nem elitista nem egoísta, mas proposta a todos, do imperador ao escravo, e a cada um na sua vida quotidiana seja por ocasião de encontros fortuitos, como os de Sócrates na ágora, seja como resultado de um prolongado exercício, como na escola de Pitágoras. O cuidado de si não é incompatível com a intervenção na vida política — vêmo-lo desde Platão, a caminho de Siracusa, até Plotino, pretendendo erigir uma cidade de sábios, Platonópolis — mas a busca de equilíbrio e de desabrochamento pessoal permanecem aí de forma preponderante. Não poderíamos pensar separadamente a moral e a política, mas a política, especialmente através da educação, apenas faz por alcançar as pré-condições da vida feliz.»
Jacqueline Lagrée, «O discurso antigo da felicidade»
em História Crítica da Filosofia Moral e Política
No calor da discussão política e ideológica, própria do momento que atravessamos, esquecemos muitas vezes que expressões como «bem comum», «bem-estar», «felicidade», «interesse» ou «utilidade», tão repetidas, têm uma história, e que o seu significado se altera de acordo com diferentes perspectivas.
É essa história e a discussão que, ao longo dos séculos, lhe está subjacente, que constitui o objecto da História Crítica da Filosofia Moral e Política.
Nela se observam as rupturas e as continuidades nesse longo debate que está na origem de muitas das diferenciações que hoje observamos nas formações partidárias e nos actores da política.
De Platão a John Rawls, passando por Maquiavel, Hobbes, Adam Smith, Rousseau, Nietzsche, Max Weber ou Levinas, entre muitos outros, esta História Crítica da Filosofia Moral e Política reúne um conjunto excepcional de estudos acessíveis, constituindo um instrumento particularmente útil e uma referência indispensável para o entendimento da história das ideias.
História Crítica da Filosofia Moral e Política
direcção de Alain Caillé, Christian Lazzeri
e Michel Senellart
coordenação da edição portuguesa:
Manuel da Costa Freitas
Informações mais detalhadas AQUI.
A propósito da passagem, em Abril passado, dos 150 anos da morte de Tocquville, divulgamos de seguida um texto incluído no último volume impresso de Annualia.
O Poder na História é o título do primeiro volume da Introdução à Política de António Marques Bessa e Jaime Nogueira Pinto.
Nele se observa e documenta a evolução das diversas concepções de Poder e de Política, desde as remotas teocracias orientais, a Grécia antiga e a Roma imperial até ao «Tempo das Revoluções» -- a Inglesa de 1640, a Francesa de 1789 e a Russa de 1917.
Uma edição Verbo.
*Capa de Magda Macieira Coelho.