O rei da festa
Há quem afirme que a Europa só conhece o peru desde o século XVI e que esse conhecimento se deve à invenção da bússola e à obstinação de Colombo em encontrar a Índia pelo Oeste. Mas… então quem são os autores das célebres esculturas escandinavas do século XII que reproduzem o majestoso animal? Deixo a pergunta em aberto e passo de imediato ao que sei desta ave, que já foi privilégio de elites, e que de tal forma se democratizou que hoje é possível, e sem-cerimónias, tê-la à mesa todos os dias.
Entre nós, o peru é o animal mais remotamente ligado às tradições natalícias. E o sonho de nós todos era conseguir um genuíno peru do campo, rechear-lhe o papo, assá-lo e enfeitá-lo como antigamente e fazer dele o rei da Festa. Sabemos bem que se isto é ainda possível na província, é difícil, se não impossível, para os que vivem na cidade.
Dada a maneira como os perus são hoje sacrificados, é impossível
rechear-lhes o papo como então se fazia, pois para isso falta-nos a pele do pescoço. Se queremos peru recheado, façamos então como os demais, lá fora, há já muito fazem, e recheemos-lhe apenas a cavidade abdominal. Vamos é exigir o fígado na altura da compra. Mas... Comecemos pelo princípio: que peru comprar? Se lhe for possível, dê preferência a uma perua, a carne é mais saborosa, acredite. O ideal seria que não tivesse mais de 8 meses; olhe-lhe bem para as patas, devem ser lisas e brilhantes. Uma boa perua pesa em média de 3,5 a 4 kg depois de limpa.
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Recheio de peru
Fígado do peru;
2 kg de castanhas;
sal;
erva-doce;
1 dl de aguardente velha;
1 trufa;
1 ou 2 ovos;
miolo de pão;
leite;
sal e pimenta.
Para o recheio: aloure o fígado com um pouco de manteiga deixando-o rosado por dentro. Pique-o e junte-o a 2 kg de castanhas cozidas com sal e erva-doce e cortadas em bocados. Regue com 1 dl de aguardente velha e, se puder, junte1 trufa em bocadinhos. Ligue tudo com 1 ou 2 ovos. Se o recheio lhe parecer insuficiente, junte miolo de pão embebido em leite. Encha a cavidade abdominal do peru com o recheio, cosa a abertura, esfregue-o com sal e pimenta e barre-o abundantemente com manteiga. Leve a assar no forno aquecido a 160ºC aproximadamente 2 horas e 30 minutos; isto é, cerca de 20 minutos por fracção de 500 g. É conveniente envolver a ave em folha de alumínio durante a primeira hora de cozedura. Quando a retirar, aproveite para regar o peru com vinho branco. Quanto ao molho, é só passar os sucos do assado por um passador e ligar com um pouco de natas e uma colherzinha de maisena especial para engrossar molhos.
Uma trabalheira, não é? Eu, este ano, estou tentada a simplificar e seguir o que vi fazer ao chefe Franco Luise. Peru, sim e recheado, para cumprir a tradição, mas apenas o peito! É mais prático, é igualmente bom e também pode ser bonito. Poupo-me assim a ter de zelar pelos restos durante 15 dias...
Texto: Maria de Lourdes Modesto em Palavra puxa Receita (crónicas publicadas no Diário de Notícias), Editorial Verbo.
Desenho: Marta Leite