
Deve-se aos brasileiros e à sua saborosa inventiva o terem dado à velha palavra "bissexto" um significado novo para, com ele, designar autores que escrevem pouco ou que raramente publicam. Há obras escassas porque a morte arrebatou cedo escritores, impedindo-os de irem além de um volume solitário e impedindo-nos de beneficiar, como leitores, de um talento que muito prometia. Aí temos o caso de Cesário Verde, com o seu Livro de publicação póstuma, de voz tão singular na lírica portuguesa. E também o caso de António Nobre, com o seu Só, livro tão único que os poemas que escreveu antes nem os que escreveu depois alguma coisa acrescentaram à imagem do Poeta exilado. O pobre José Duro, mal expelira o seu Fel, a morte o levou, exaurido de corpo e alma.
Diferente é o caso de Camilo Pessanha, que recolheu ao silêncio de motu proprio, salvando-se a sua poesia graças à devoção de Ana de Castro Osório e à solicitude de seu filho João, que transcreveu os poemas ditados pelo autor e viriam a ser coligidos na Clepsidra.
Como diferente é o caso de Fernando de Paços, cuja obra poética foi reunida num volume só, pela Imprensa Nacional–Casa da Moeda. Ao contrário daqueles antepassados, foi-lhe concedida uma vida mais dilatada, que lhe deu algum espaço para cuidar do seu jardim. E O Fértil Jardim é o título de uma das raras colectâneas publicadas por Fernando de Paços (1923-2003). Mas esse "jardim", mais do que "fértil", assinala-se por sua discreta graça. Tratando amorosa e pacientemente o seu "jardim", o Poeta não teve pressa, dir-se-ia que até um certo escrúpulo em expô-lo a público. É que, ao lado de um alto grau de exigência, haveria em Fernando de Paços um como que pudor de se exibir na feira literária, com todo o seu ruído, vaidade e emulação. Nem o seu interesse pelo teatro o levou a subir ao palco. Autor de peças infantis e entusiasta de fantoches e marionetas – era, certamente, a faceta lúdica de um homem reservado –, escondia-se atrás da cortina.
Data de 1953 O Fértil Jardim. O seu primeiro livro, Fuga, é de 1944 e aparece incluído numa colecção da "Poesia Nova", movimento que arvorava como lema "a Arte pelo todo". Contra uma visão particular, e até partidária, da arte e da vida, propugnava esse movimento uma poesia sem constrangimentos estéticos ou políticos. Era, pois, uma visão total, católica, universal, contraposta à concepção ideológica do neo-realismo do Novo Cancioneiro. Fuga ao realismo ou evasão do mundo? Não, o mundo olhado na sua dupla dimensão real e espiritual ou transtemporal. Não uma fuga à vida, mas uma vida mais interiorizada. Os três poemas finais de Fuga – "Salmo", "Cântico", " Resgate" – apontam para essa direcção transcendente, que as duas colectâneas seguintes vão aprofundar.
O Fértil Jardim tem a chancela da Távola Redonda, a revista que, com maior rigor estético e menor intuito confessional que a "Poesia Nova", se negava tanto ao desleixo formal como à veemência panfletária. Secretário dessa revista, Fernando de Paços participava da mesma oficina artística dos poetas mais representativos dela – António Manuel Couto Viana, David Mourão-Ferreira e Luiz de Macedo. Veja-se este poema tão exemplar da consumada arte de um poeta da família musical de Camilo Pessanha: "Que bom era exprimi-la / mas só posso sonhá-la! / Como era bom levá-la, / como era bom! – Tranquila… // Como era bom despi-la / ao poder encontrá-la! / Já não sorri. Não fala… / Da carne separá-la, / como era bom despi-la! // Acordá-la e despi-la, / (do seu corpo despi-la!) / mas a alma, que é sua, / que bom era levá-la / (para longe levá-la!) / para bebê-la, nua. / – Já não respira… Estua. / – Já não responde… Cala." Não será de aproximar este poema do soneto "Estátua" de Pessanha?
Dez anos, mais dez anos teriam de passar para que Fernando de Paços se decidisse a reunir novos poemas seus na colectânea O Segundo Dilúvio (1963), desta vez com a chancela da Verbo, a que ele deu, durante décadas e como director editorial, o melhor do seu zelo, competência e gosto gráfico. Punha nos livros dos outros o mesmo cuidado que dava aos seus poemas. N’O Segundo Dilúvio acentua-se o pendor religioso, místico até, do autor, que não cede a um exterior folclorismo devoto. Aqui, embora a palavra "dilúvio" evoque a ameaça apocalíptica do Génesis, há todo um clima puramente angélico e a esperança que antevê a "cidade tranquila", a "cidade nova" que prefigura a Jerusalém celeste. É a nova Terra, é o novo Céu, depois da "grande tribulação", na linguagem bíblica.
Muitas águas correram entretanto debaixo das pontes e parecia definitivo o silêncio literário de Fernando de Paços, quando, muito instado, acedeu a organizar novo livro, só em 1995 vindo a lume: A Jangada Aérea. Há pessoas assim, que parece terem feito voto de silêncio longe do ruído e da vaidade do mundo. Fernando de Paços atravessou silencioso o mundo, e dele foi ignorado, como certamente ambicionava. A ele, pois, se aplicam os versos de Dante: "E se il mondo sapesse il cor ch’egli ebbe […] Assai lo loda e più lo loderebe." E n’A Jangada Aérea se projecta, de novo, a luminosa sombra de Camilo Pessanha, neste poema: "Estátua de alabastro, mutilei-a. / Dividi-a em pedaços, escondi-a / Na sombra do jardim oculta ao dia / E sob areia fria sepultei-a. // Chorei depois a morte hórrida e feia, / E por muito mais tempo choraria, / Se não visse, na aurora que nascia, / Recompor-se e elevar-se a estátua inteira. // Mas ante a maravilha que me espanta, / Que me detém e logo me perturba, / Enquanto um fio d’água remurmura / E o peito alabastrino expira e canta, // De novo ataco aquele que perdura / E a cada nova morte se levanta / Mais alta, mais notável e mais pura."
Se a sua Obra Poética não ocupa mais de centena e meia de páginas, os seus escritos em prosa poucas dezenas ocupariam. Mesmo na Enciclopédia Verbo, naturalmente aberta à sua colaboração, não escreveu mais de três verbetes, dois deles sobre um tema que lhe era caro: o teatro de fantoches.
A sua vocação não era a de publicista – era, no mundo, a de monge contemplativo.
João Bigotte Chorão
(excerto adaptado de um texto publicado em ANNUALIA 2006-2007)
As lembranças de Sião: uma leitura de Diário Quase Completo, de João Bigotte Chorão
por Jorge Colaço
Diários há que exprimem uma fidelidade aos dias e aos gestos, minuciosos registos de existências. Há outros que, atentos aos mesmos dias e gestos, exprimem acima de tudo uma fidelidade ao espírito, não se prendendo apenas à superfície rugosa das circunstâncias, embora também delas emanando. Não se estranhará, pois, que a leitura de um desses diários, em que sobretudo emerge uma voz feita de regressos a si própria, invoque, como referência, a instância poética.
Não porque «de todos os géneros literários, nenhum mais híbrido do que o diário» (pág. 38), podendo nele caber até o poema, em prosa ou não, mas pela natureza fragmentária da forma e pela pouca sedução pelos sistemas que faz com que o autor dos diários de Diário Quase Completo (Imprensa Nacional, Lisboa, 2001), afirme «Quero-me antes com os poetas» (pág. 114). A voz que atravessa a prosa, límpida e vigiada, de João Bigotte Chorão, revela-se lírica pela rede de intensidades que estabelece (de algum modo afins das fulgurações poéticas ou das formulações aforísticas) e que o espírito vai envolvendo, religando e dando continuidade, como música íntima e paradoxal, simultaneamente feita de esperanças e de fundamentais angústias. É a tentativa de encontrar os movimentos dessa música de fundo, que supera as diversidades e adversidades do tempo e dos tempos, que me dá fundamento para abordar aqui a obra sem atender às suas naturais divisões.
Há, na prosa dos diários de João Bigotte Chorão — de assinalada filiação torguiana, pelo despojamento: «A preocupação da sinceridade nunca deverá compelir-nos a publicar o que é estritamente reservado» (pág. 49) —, uma dupla presença de ressonância camoniana.
Em primeiro lugar, porque Camões nos surge como constante poética de uma vida, matriz cultural e pessoal: «não o poeta oficial, o património colectivo, mas o meu poeta, património individual» (pág. 555), «santo da minha devoção» (pág. 543).
Depois, porque essa matriz é também a «da decadência, do desastre, do desconcerto do Mundo», temas caros à reflexão de João Bigotte Chorão, e capaz de inspirar «todo um sentimento trágico da vida», a que só Unamuno saberia dar completa expressão filosófica e cujo imperativo o Autor sente como essência necessária ao homem, ao escritor e ao cristão.
É de Sião que João Bigotte Chorão se lembra na desolada Babilónia das noites inquietas. É a Sião que aspira na «árida solidão» de Babilónia (pág. 142), mundo degradado, caído, mundo dessacralizado, confuso por fora e por dentro seco (vejam-se a título de exemplo as entradas relativas aos sucessivos Natais) — e, como no texto camoniano, Sião é aqui, de uma vez só, um tempo (pessoas, valores, livros, autores, objectos) quase irrecuperável nas ruínas do presente, mas também um futuro, mais além, «alta torre» à qual, como o poeta, não pode ascender sem o auxílio de Deus, fidelidade maior, simultaneamente problema e solução.
Porém, se em Camões é a vida vivida que fala, no Diário de João Bigotte Chorão a vida é sobretudo a meditada no recolhimento e inquietação interiores, vida espiritual. Se em Camões fala o homem de acção e de experiência, aqui fala sobretudo o leitor (de cartas, memórias, diários, livros, documentos, testemunhos: «Na obra procuro sempre o autor. E conhecê-lo, conhecer o seu rosto, interessa-me tanto como conhecer as suas ideias», pág. 113), o escritor, o espectador. Camões terá podido conjurar o desgosto da vida através da arquitectura heróica da epopeia lusa. Ao Autor, resta-lhe fazer ressurgir, com cuidados de arqueólogo, pedaços de Sião perdido, perseguir vivazes lembranças de Sião nas ruas de Babilónia. E a única epopeia possível é a do Eu, a única aventura heróica a da resistência do Eu, em busca de um eco («E é na esperança de encontrar eco para o meu grito que tiro da gaveta o diário», pág. 143), de uma afinidade, de uma partilha, «apesar de todo o silêncio» (pág. 117), epopeia da «extraordinária aventura de escrever» (pág. 117), sotto voce, anti-epopeia portanto, apenas fidelidade a si mesmo.
Figuração de diária resistência interior, o Diário de João Bigotte Chorão vai traçando um itinerário de «vozes fraternas» que falam «da mesma angústia, tornando assim menos solitária a nossa solidão» (pág. 124), fazendo surgir a nossos olhos da primeira à última página uma verdadeira e aristocrática «família espiritual» consagrada pela admiração literária e artística, sem outro compromisso que não seja a adesão a um estilo literário, a um fulgor intelectual, a uma visão do mundo, a um universo de valores, ou, ainda, à grande âncora da amizade.
Vão-se destacando as figuras deste convívio exigente, tão diversas entre si, mas ardendo em idêntico lume dramático. Papini: «escritor…multifacetado» (pág. 15), León Bloy : «Com Bloy, desço aos abismos onde as trevas me cegam e subo aos altos cimos onde a luz me cega também.» (págs. 412-413), Julien Green: «Chaque homme dans sa nuit... Como não estremecer diante desse espelho que nos devolve a nossa inquieta imagem?» (pág. 158), Unamuno: «tão vasco e, no entanto, salmantino, tão salmantino e, no entanto, espanhol, tão espanhol e, no entanto, universal» (pág. 383), Jünger: «o último dos patrícios ou o último dos aristocratas» (pág. 528), Vintila Horia: «Eis um homem com o qual me posso entender: ele está exilado da sua terra, eu estou exilado na minha» (pág. 100), Soffici: «escritor que foi sempre, mesmo quando escrevia, pintor» (pág. 231), Prezzolini: «atraiu-me logo a mente clara [...] e aquele seu modo impertinente, que parece quase cínico, de pensar e de escrever» (pág. 366), Miguel Ângelo: «A pintura é na verdade coisa mental, e na obra de Miguel Ângelo tanto se admira o génio do artista como a audácia do pensamento» (pág. 135), Rouault: «a arte religiosa de um tempo de violência e de tragédia» (pág. 538), Almada: «junto de quem nos sentimos inteligentes por contágio, ou estúpidos por contraste» (pág. 105), Bresson: «diálogo entre a luz e a sombra, o ruído e o silêncio, o dizível e o inexprimível» (pág, 449).
E, claro, Camilo: «Não, não pertenço a nenhuma família política ou religiosa. Sou um viajante solitário, sem compromissos nem dependências de grupos. (…) Se pertenço a alguma família, é à família camiliana.» (pág. 540), Tomaz de Figueiredo: «amigo e mestre» (pág. 470), Francisco Costa: «A literatura foi nele a expressão, ao mesmo tempo inteligente e culta, da vida» (pág. 436), João de Araújo Correia: «escritor solitário», um «patriarca» (págs. 193 e 357), Torga: «Torga foi um dos mais belos capítulos da minha vida, pela atenção e estímulo da sua parte, pela admiração e fidelidade da minha parte»» (pág. 526).
Mas também Pascal, Corção, Gide, Goya (o Goya dos Caprichos), Montherlant, David Mourão-Ferreira, Cioran, Camões: «Camões, Camilo, Cioran — o poeta do desconcerto, o novelista da fatalidade, o pensador da decadência — são os autores cuja companhia me é, singularmente, salutar.» (pág. 433),
A capacidade de admirar é, aliás, um aspecto importante, que o autor de Camilo Camiliano e de O Essencial Sobre Camilo reclama para si e sem a compreensão do qual a leitura do seu Diário fica irremediavelmente ferida («A minha arte poética: pôr no que escrevo, não o que detesto, mas o que amo», pág. 113). Em Cioran, por exemplo, releva entre tudo os Exercices d’admiration (págs. 530-531), que a seus olhos de algum modo atenua o niilismo de outras obras, mais cruas, mas ainda assim admiradas pelo desafio do paradoxo e pelo recorte da prosa, expressão de um ‘amor da literatura’ que já tive ocasião de salientar noutro lugar (Cf. Brotéria, vol. 149, Julho de 1999). Admirações que são também dívidas, como as que mantém em relação à cultura italiana (pág. 80), à qual se sente atavicamente ligado.
Admirações que obrigam, que impõem responsabilidades intelectuais. Em Abril de 1977 (pág. 301), incansável epistológrafo à rebours desta Babel de palavras ao vento, anota a recepção de uma carta de Mircea Eliade, outro dos 'latinos do Oriente' com quem contacta, que lhe revela a existência de um diário português inédito, aqui escrito durante os anos de guerra. A demanda desse manuscrito, movido pelo desejo e pelo dever de 'trazer à luz', de 'dar a conhecer', só haveria de terminar um quarto de século depois, com a sua publicação em outro país, de algum modo o preço da «nossa indiferença, ou quase indiferença» (pág. 408)*. Pequeno país, demasiado pequeno, para tanta História.
Admirações que, no seu conjunto, constituem uma viagem a territórios da cultura e da literatura sobre os quais caiu ou vai caindo o largo manto do silêncio, viagem a um mundo cujo desaparecimento se vai materializando, ao longo dos quarenta anos de Diário, na morte (real e simbólica) de muitos dos seus protagonistas. É, também aqui, a resistência contra o esquecimento — «Devo ter sido o único que em Portugal se lembrou de Papini, ontem que fez um século que ele nasceu» (pág. 351) ou «Suspeito que no Brasil o centenário de Corção será celebrado apenas com o silêncio» (pág. 549). Contra os sempre atentos vigilantes ideológicos. Resistência à ‘indústria cultural’, que, com o seu circo feérico de clowns e ilusionismos, tudo entrega à voracidade das sombras.
Leitores deste Diário, participaremos também desta resistência.
* O diário português de Eliade conheceu finalmente edição portuguesa em 2008, na Guerra e Paz. João Bigotte colaborou na sua revisão e anotação, tendo participado do seu lançamento.
[Texto originalmente publicado em 2002 na revista Foro das Letras, dirigida por António Osório]
O Grande Prémio de Literatura Biográfica da Associação Portuguesa de Escritores (Associação Portuguesa de Escritores) e da Câmara Municipal de Castelo Branco foi atribuído ao livro Diário Quase Completo, de João Bigotte Chorão.
A decisão de distinguir esta obra, publicada pela Imprensa Nacional - Casa da Moeda, foi tomada por um júri presidido por José Correia Tavares (vice-presidente da APE) e constituído por Artur Anselmo, Cristina Robalo Cordeiro e Clara Rocha.


João Bigotte Chorão é um escritor português (Guarda, 1933) ligado, por gosto e formação, às culturas italiana e francesa, prestando particular atenção ao diarismo, ao memorialismo e à epistolografia, áreas de que é profundo conhecedor. A sua obra reparte-se sobretudo pelo ensaio e pelo diário. De formação humanista cristã, João Bigotte Chorão foi director literário da Editorial Verbo e aí teve a seu cargo o departamento de Enciclopédias e Dicionários, no âmbito do qual dirigiu a publicação da Enciclopédia Verbo – Edição Século XXI (29 volumes, 1998-2003), para a qual também redigiu numerosos verbetes. É um colaborador assíduo de Annualia.
Algumas obras, além da intensa colaboração em revistas, de numerosos prefácios, estudos e palestras: Vintila Horia ou um Camponês do Danúbio (1978), Camilo. A Obra e o Homem (1979; 2.ª ed. rev.: Camilo, Esboço de um Retrato, 1989); João de Araújo Correia, um Clássico Contemporâneo (1986); O Escritor na Cidade (1986); Carlos Malheiro Dias na Ficção e na História (1992); Camilo Camiliano (1993); O Essencial sobre Camilo (1997); Nossa Lisboa dos Outros (1999); O Essencial sobre Tomaz de Figueiredo (2000); Galeria de Retratos (2000); Diário Quase Completo (2001); O Espírito da Letra (2004).