Existe, nos tempos que correm, um visível, talvez até palpável, menosprezo, se não mesmo desprezo, por tudo o que releva de uma dimensão intelectual. Nada de novo, mas que por vezes assume contornos inquietantes.
Este lastro negativo corresponde, em parte, ao triunfo ufano do que é superficial e raso, que hoje se funda na desmemória e na ideia velha e obtusa de que pensar é a mais vã das actividades. A categoria do «mental» é literalmente insubstancial. O intelectual, como o poeta, tornou-se risível. Só a inércia justifica o relevo e a reverência remanescentes. A verdade é que em diferentes instâncias da nossa vida pública e privada se instalou, ou, estando já instalada, se reforçou, uma indisponibilidade para pensar.
Em certos meios, o que não se tolera no intelectual já não é tanto o ser de esquerda ou de direita, conservador ou vanguardista, militante ou descomprometido, artista ou simplesmente tonto, mas sim o facto de ser intelectual. As ideias passaram ao domínio do intolerável, elementos de uma conjura que teima em complicar o que é simples, que insiste em ver nublados os céus limpos.
A actividade intelectual incomoda o mundo descomplicado do pronto-a-pensar, sobretudo quando se afirma pela liberdade de espírito, a sua energia fundamental, e sonda as dificuldades, contraria as convenções, ou se insinua no avesso das conveniências, dos hábitos, dos gostos, ou das ideologias.
É precisamente na dimensão intelectual e no gosto de pensar que se funda o ensaísmo. Pelo menos o verdadeiro ensaísmo. Talvez por essa razão nunca criou fundas raízes entre nós e se foi progressivamente transformando em género raramente praticado e publicado. Falo de ensaísmo, não de teses ou estudos universitários, obrigados a um certo número de rituais e procedimentos. Falo de um pensamento cuja identidade é indesligável da sua formulação, que faz do ensaísta um escritor.
Curiosamente, o escritor (expressão que corresponde no português actual a romancista ou, mais exactamente, a autor de romances) não é geralmente tido por intelectual. Alguns esforçam-se mesmo por não o parecerem. Por outro lado, não há muito tempo ouvi um «programador cultural» de créditos firmados afirmar que «só lê ficção». Pois é.
Felizmente, o ensaio ainda não desapareceu por completo da edição portuguesa e a feira do livro é um bom lugar para o descobrir.
Jorge Colaço