«A passividade e a servidão não vêm apenas do funcionamento dos nossos afectos mas da nossa relação com as demais realidades da natureza, particularmente com as que, por nos estarem mais perto e serem mais semelhantes, são simultaneamente as mais úteis ou as mais ameaçadoras: os outros homens. Como Hobbes (Carta dedicatória do Citoyen), Espinosa poderia dizer que o homem é simultaneamente um lobo ou um deus para o outro homem [Lagrée, 1995]. Se prefere pôr o acento na segunda formulação, não é por ignorar os malefícios de que os homens são capazes relativamente a seus semelhantes, é porque toda a sua filosofia é orientada para o dinamismo positivo da vida. Cada um de nós tem evidente necessidade dos outros para fazer face às necessidades elementares da vida [Espinosa, TTP, V], mas, mesmo satisfeitas estas, o outro homem, e mais particularmente o homem livre, é um auxiliar insubstituível para bem viver. A vida comum garante num quadro colectivo a utilidade comum e a segurança, mas mais ainda, ao favorecer a permutação de toda a espécie: troca de bens, de serviços, de pensamentos — a sociedade, e particularmente a sociedade democrática, dilata o campo perceptivo de cada um, estimula a imaginação, abre um campo mais vasto e mais livre aos avanços da razão e contrabalança as tendências obsessivas dos afectos passivos. Contra os aristocratas do pensamento, os defensores de um saber elitista e reservado, Espinosa defende a tese segundo a qual é levando em conta muitas ideias que se chega a ter posições razoáveis, que é confrontando livremente as opiniões, no respeito das leis e da segurança do Estado, que as opiniões extremas se anulam e que uma posição sensata emerge do debate. Assim, «nada é mais útil ao homem do que um homem a viver sob a conduta da razão» [E, IV, 35, sc. 1], mas também é na cidade que o homem livre tem maior possibilidade de se encontrar.»
Jacqueline Lagrée, «Espinosa (1632-1677): o caminho da liberdade e da bem-aventurança», História Crítica da Filosofia Moral e Política.
«Uma tal concepção dos modos de composição dos interesses comportava duas consequências. A primeira é que ela se demarcava, e até se opunha, acertas práticas governamentais dependentes da autoridade e da razão de Estado:a primeira destas práticas, teorizada e descrita em múltiplos tratados,caracterizava-se como uma arte de governar que consiste, para o príncipe,em contar ao mesmo tempo com os lucros dos seus súbditos e com os seus negócios a fim de os orientar, já que o não fazem por eles mesmos, para o lucro do Estado. Como dirá Monchrétien no seu Tratado de Economia Política: «A melhor influência que se pode ter sobre os homens é conhecer-lhes as inclinações, os movimentos, as paixões e os hábitos; tomá-los pelas asas é poder levá-los onde se quiser.» Cabe portanto aos governantes, por um conhecimento e uma hábil utilização das regras da produção e da permuta, do controlo dos preços, do aprovisionamento dos mercados, dos meios de transporte, dos recursos do Estado, mas também do número e dos costumes dos súbditos, de chegar a compor os seus lucros interesses a fim de reforçar o do Estado, que reside na riqueza e no poder. Trata-se aí de uma das tarefas essenciais que a autoridade põe de pé, por meio de um conjunto de regulamentações específicas e de um trabalho de conhecimento (descrições, recenseamentos) e de vigilância constante da população e dos recursos do reino.»
Alain Caillé, Christian Lazzeri e Michel Senellart, «A Idade da Razão. O despertar do interesse racional», História Crítica da Filosofia Moral e Política.