por Josué Montello *
A 18 de Abril de 1888, a Princesa Isabel agracia o escritor com a Ordem da Rosa.
Ao sobrevir a República, o caramujo se manteria encolhido, como simples espectador da vida política, a que daria de longe em longe, nas suas crónicas ou na transparência da ficção literária, o reparo breve de seus comentários. Em 1892, transformada a Secretaria da Agricultura em Secretaria da Indústria, Viação e Obras Públicas, ei-lo Director-Geral de Viação, claro testemunho de que o novo regime lhe reconhecia os merecimentos.
O escritor, após a publicação das Memórias Póstumas de Brás Cubas – a princípio saídas na Revista Brasileira, depois em livro –, alcançara a culminação da sua carreira, no estilo, na originalidade do tema, na agudeza da filosofia de desencantos.
Vinha de longe, por esse tempo, a ideia de criar-se uma Academia Brasileira, nos moldes da Academia Francesa. Chegara a cogitar-se do assunto no Instituto Histórico, por volta de 1847. Em 1883 fundara-se no Rio a Associação dos Homens de Letras do Brasil, com Machado de Assis entre os seus membros.
Mas o tempo se encarregou de desfazer esses actos bem intencionados. Na República, Medeiros e Albuquerque foi o primeiro a pensar em levar adiante a ideia de uma Academia, ainda em 1869. Mas só em 1896 a instituição passaria da condição de simples sonho para a realização efectiva, desta vez sob a presidência de Machado de Assis.
O livro que Sílvio Romero lhe consagra, e que sai no mesmo ano da instalação da Academia Brasileira, vale mais como um ataque do que como uma apreciação de conjunto de sua obra e de sua personalidade de escritor. Machado de Assis não reage. Sente que chegou ao altiplano. A apreciação do que realizou pertence à crítica, não à sua pessoa. E a crítica vem, com efeito, em defesa de seu legado de arte.
Deixando que a polémica se desfizesse, Machado de Assis dava a si mesmo a consolação que dera a José de Alencar: sabia que tinha em seu favor a conspiração da posteridade. A vida no lar, na sua casa de Cosme Velho, continua a ser, para Machado de Assis, um idílio de mocidade.
Além de companheira e consorte, Carolina era para Machado de Assis a confidente. Por isso, em 1904, quando ela morre, a desorientação do escritor parece irreparável.
E ele, sempre sóbrio nas expansões epistolares, não sabe sofrear a pena amargurada: «eu estou ainda muito perto de uma grande injustiça para descrer do mal».
Após a morte de Carolina, Machado de Assis passará a expandir-se, na ordem das confidências, com dois amigos, que tinham idade de ser seus filhos: um, que está sempre a seu lado, Mário de Alencar; outro, que está distante, cumprindo vida diplomática, Magalhães de Azeredo. Ao primeiro, confidencia um pouco de sua vida íntima; ao segundo, deixa fluir ao longo da correspondência epistolar as confidências literárias. É certo que, com este último, já o escritor fechado e esquivo dera um pouco de si mesmo, revelando certos arcanos de seu pensamento; a solidão, com a morte da companheira, fê-lo ainda mais expansivo.
Na amizade dos companheiros o velho escritor se refugia para mitigar a solidão. Nas horas em que esta se fecha sobre a sua pessoa, no recesso da casa vazia de Carolina, ele se debruça sobre o papel em branco e encontra nas letras a consolação do seu ocaso. E este ocorre em Junho de 1908, quando o mestre entra em gozo de licença, no seu cargo de director da Contabilidade do Ministério da Viação, para tratamento de saúde. Aproxima-se agora o termo de sua vida. Em seu redor tem a assistência dos amigos e companheiros.
D. Francisca de Bastos Cordeiro, que frequentemente o visitava, deixou-nos, sobre esses dias derradeiros de Machado de Assis, este depoimento:
«Quando o seu estado se agravou, Machado de Assis passou a dormir na pequena saleta de costura de D. Carolina, junto à sala de jantar, cuja porta ficava em frente à que abria para a entrada habitual, no patamar da sala. Repousava em modesto leito de ferro, tendo à cabeceira uma mesinha e, pouco afastadas, duas cadeiras, das da sala de jantar.»
E ali faleceu o grande escritor na madrugada de 29 de Setembro. Na tarde desse dia, saiu o féretro do prédio do Silogeu Brasileiro, onde a Academia tinha a sua sede. Junto ao ataúde, falou Rui Barbosa, em nome de seus companheiros, acentuando que se despedia do confrade modelar: «Não é o clássico da língua; não é o mestre da frase; não é o árbitro das letras; não é o filósofo do romance; não é o mágico do conto; não é o joalheiro do verso, o exemplar sem rival entre os contemporâneos da elegância e da graça, do aticismo e da singeleza no conceber e no dizer; é o que soube viver intensamente da arte, sem deixar de ser bom.» (fim)
* Publicado em Gigantes da Literatura Universal, vol. 26, Verbo, Lisboa/São Paulo, 1972.




