Sábado, 25 de Julho de 2009

2009 Ano Internacional da Astronomia V

 

por Máximo Ferreira

Astrónomo

QUINTA PARTE
O céu património da Humanidade

O termo «património» que, em tempos, correspondia a «o que se recebia do pai», possui actualmente um significado diferente e muito mais vasto, quer do ponto de vista pessoal quer colectivo. Abrange, hoje, locais arqueológicos, edifícios, paisagens, artefactos, instrumentos de uso comum, canções, danças, tradições orais e outras expressões da vida quotidiana, bem como todos os vestígios do passado que contribuíram para o estado actual dos povos, quer do ponto de vista do tipo e variedade de conhecimentos adquiridos, quer das formas de vida que resultaram de factores históricos.

Nesse sentido, o céu pode considerar-se o mais rico e amplo património, com diversas componentes. Foi nele que se estabeleceram os mais antigos factores de curiosidade e conhecimento e foi por ele que os nossos antepassados aprenderam a regular as suas vidas. Convivemos ainda com inúmeras expressões resultantes (pensa-se) da observação dos céus e da verificação de que entre a Terra (durante muitos séculos considerada imóvel e no centro do mundo) e o firmamento (também designado por «céu» ou «esfera das fixas») deslizavam sete «astros errantes»: Lua, Mercúrio, Vénus, Sol, Marte, Júpiter e Saturno, por ordem crescente das distâncias a que se julgavam as suas trajectórias em volta da Terra Daí terá resultado a «simpatia» que ainda hoje se nutre pelo número sete: o afirmar que existem sete cores num arco-íris, as tradições orais de «sete mulheres do Minho», as «sete vidas dos gatos», o terem sido adoptadas «sete notas» para escrever composições musicais, os provérbios e cantigas com o número sete e, muito provavelmente -- embora muito mais antigo – o facto de textos sagrados terem descrito a criação do mundo em sete dias e os mortais castigados com sete pecados mortais.

Presentemente, a contemplação do céu oferece-nos elementos importantes da história da humanidade, das culturas em diversos pontos do planeta e, em muitos casos, angústias e medos que os nossos antepassados representavam no firmamento. Por outro lado, é nele que vemos passear pontos luminosos que correspondem às máquinas que somos capazes de criar para – em geral – contribuirmos para o bem-estar da humanidade actual e acumularmos conhecimentos e desenvolvermos recursos que proporcionem aos vindouros vidas ainda mais confortáveis.

É no espaço que colocamos grande parte das nossas esperanças de conhecer novos mundos e, eventualmente, outros seres, mas é também do espaço que pensamos conhecer melhor a Terra, os seus recursos, a sua evolução e até mesmo a sua estrutura.

O «céu» é tudo o que «está» por sobre a nossa cabeça e é ele que contém ainda o fascínio do convite à imaginação e ao sonho. Ao céu estão associados factos de todas as épocas decisivas da humanidade e é nele que «vemos» inúmeros recursos da vida moderna e futura, razão por que reúne todos os atributos de um património que deve ser enaltecido e preservado.

Por isso, às recomendações que certamente vão levar à declaração do céu como património da Humanidade, por parte da UNESCO, deverá juntar-se um esforço permanente de, não só preservar condições de observação do céu, mas devolver aos cidadãos (pelo menos) uma parte considerável desse direito. São frequentemente considerados como resultado de «exibicionismo», «ignorância», «desprezo» e outros predicados, actos que consistem em colocar iluminação artificial intensa em ruas, habitações, edifícios, monumentos e até recintos desportivos, através de candeeiros e projectores de concepção inadequada ao objectivo de iluminar.

Na verdade, a maioria dos sistemas de iluminação são visíveis por quem se situe em pontos muito acima dos locais onde se encontram instalados (inclusive os passageiros de aviões) o que significa que muita da energia luminosa é projectada para cima e não para o objecto a iluminar.

Para além de desmesurados consumos, ocorrerão inevitáveis deteriorações de materiais (com particular preocupação para os constituintes de monumentos) e agrava-se a agressão à iluminação natural (luz solar durante o dia e ausência de luz durante a noite).

Mas, certamente mais grave, aos cidadãos vai sendo cada vez mais vedado o contacto com o céu, o seu mais importante património. Nas cidades e outros meios urbanos em que a exuberância se manifesta por despropositada poluição luminosa é, em muitos casos, já impossível ver estrelas e, muito menos, grupos de estrelas que lembrem uma ou outra história antiga. Os ambientes e paisagens alteram-se radicalmente sendo, já em muitos casos, difícil contemplar um ambiente nocturno… durante a noite.

«2009 Ano Internacional da Astronomia» proporcionará acções de sensibilização dos cidadãos em geral para a importância da Astronomia na vida quotidiana, não só como património histórico mas também como factor de extraordinário valor -- actual e futuro -- para o bem estar da humanidade. Para além disso, espera-se o advento de possibilidades de demonstrar como a tomada de medidas tendentes a travar o incremento da poluição luminosa -- e mesmo a reduzir a actual -- contribuirá não só para a redução do esbanjamento dos recursos energéticos do nosso planeta, mas também para a melhoria das condições de vida humana.

A sensibilização das populações em geral terá de começar pelos organismos governamentais, não só através de sugestões de medidas (como acessórios de iluminação menos agressivos) mas ainda pela transposição para a legislação nacional de normas já definidas internacionalmente.


*Texto inicialmente publicado no volume Annualia 2008-2009

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publicado por annualia às 16:04
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