Há alguns anos, observei umas estudantes de letras que tentavam abastecer-se, numa livraria, de livros exigidos na bibliografia de uma das disciplinas do curso. Confrontadas com um dos títulos da lista, um livro de certo poeta português, uma delas prontamente afastou a hipótese de aquisição, defendendo que aquele não era necessário ler por não ser provável que algum dia, no seu previsível futuro de professoras, tivessem de «dar» aquele autor. Não seria preciso, pois, ler um autor que não constasse dos programas.
Este episódio, entre outros, familiar a quem me conhece há muito, serviu-me ao longo dos anos para ilustrar a cada vez menor distância entre o que os professores sabem e o que ensinam, isto é, que eles tendem a saber (partamos do princípio que sim) apenas o que têm de ensinar.
Vive-se, hoje mais do que nunca, na devoção a um saber «útil», no sentido instrumental, que serve alguma finalidade previamente estabelecida. Ainda há pouco tempo, dei casualmente conta de uma jovem de aspecto triste e anódino que lia um livro cuja sinopse promete ao leitor «doses maciças de estímulo» para ele se elevar «acima da mediocridade». Até a pura distracção aparece, ela própria, como uma função utilitária, que boa parte da ficção se presta a desempenhar.
Daí que a poesia esteja (ainda mais) atirada para o canto das inutilidades. De facto, a poesia não é «instrumental», como uma chave de parafusos o é. «O poema é antes de tudo um inutensílio», disse o poeta brasileiro Manoel de Barros.
A «utilidade» que um leitor for capaz de encontrar na leitura de livros «inúteis» continua a ser um dos grandes fascínios da leitura: não uma utilidade instrumental, mas um eco que o repassa, como se fosse o primeiro e único leitor de cada um deles. Como se tivesse descoberto, por si e só para si, a senha do singular acesso ao que Raul de Carvalho descreveu como «a santa clareza com que os Poetas falam nas trevas das coisas mais escuras.»
Convido todos a abastecerem-se, ao longo destes dois últimos dias da feira do livro, de alguns livros inúteis.
Jorge Colaço