
Ontem, primeiro dia da feira do livro, uma jovem que viajava no mesmo autocarro em que eu seguia, manifestava ao telefone a sua imensa felicidade por ter acabado de enviar o seu primeiro romance a um concurso (de romances, imagino). O entusiasmo da jovem, que não teria mais de vinte e um ou vinte e dois anos, era visível, apesar de contido nos limites de uma aparente serenidade. Percebia-se que era estudante universitária, por razões que não vêm ao caso explicar, mas que se prendem com o facto de as pessoas, e não apenas os jovens, falarem hoje publicamente ao telefone sem pudor de imporem a sua intimidade a quem, por mero acaso, as rodeie. A emoção do nome impresso, e a projecção nele de toda uma família de expectativas, transparecia de forma tocante na voz e na expressão da rapariga, que acrescentou, como quem tira um dia ao calendário das ambições, só lhe faltar agora plantar um árvore e fazer um filho. Infelizmente, o interlocutor não reconheceu o lugar-comum.
Pouco depois, num primeiro passeio pela feira, ainda meio aberta, meio fechada, pensei, à medida que os meus olhos se abismavam no prodigioso espectáculo a que a ficção hoje se entrega, em que língua teria escrito a jovem do autocarro o seu romance. Não me entendam mal, ela certamente usou a língua materna. Mas que parte dela?
A língua é uma pátria longínqua. Perdida na sua própria grandeza, estreitou-se. A vigorosa variedade vernacular cedeu às pressões do uso comum, da preguiça comum, da ignorância comum e do comum descaso. E, neste minguado território, quase se perdeu a noção de que, para se escrever bem, não basta arrumar ordeiramente as palavras nas frases.
Lembrei-me, depois, de uma observação de Paul Morand num prefácio às Lettres Persanes, deMontesquieu: «un vrai roman s’écrit avec ce qui nous manque, avec ce qui nous fait souffrir». Se isto é verdade (e o comentário não se dirige à jovem do autocarro, a quem desejo êxito), são cada vez mais raros os verdadeiros romancistas.
Jorge Colaço