Terça-feira, 27 de Novembro de 2007

Centenário de Mircea Eliade

Uma imagem de Mircea Eliade (II)
por João Bigotte Chorão*

Optando pela carreira diplomática, é colocado como adido cultural na Legação romena em Londres. Essa nomeação coincidiu com a guerra e os bombardeamentos que flagelaram a capital britânica. Transferido para Lisboa, aqui veio encontrar a paz numa Europa em guerra. Era porém, como na mesma época observou o fino espírito de Saint-Exupéry, uma paz toldada pela incerteza da sorte das armas das potências beligerantes. Aqui chegado, interessou-se o escritor romeno pelos nossos clássicos (Sá de Miranda, Camões, Eça de Queirós) e relacionou- -se com António Ferro, Fernanda de Castro, Carlos Queiroz, José Osório de Oliveira, João Ameal, Luís Forjaz Trigueiros. Reunia em sua casa tertúlias semanais — tertúlias onde se discutia de omni se scibili. Assim as evoca Fernanda de Castro em Cartas para além do Tempo: «Os assuntos eram variados, de importância desigual mas que nos pareciam, a todos, essenciais. Falávamos de Deus, da imortalidade da alma, da reencarnação, da história das Religiões, do Bem e do Mal e, noutro plano, da Atlântida, das Pirâmides, dos Templários, etc., etc.» Em Portugal, Eliade empenhou-se em lançar pontes entre os latinos do Ocidente e os latinos do Oriente, promovendo traduções, conferências, concertos. Mesmo livros que escreveu entre nós visavam o mesmo objectivo — e daí Os Romenos, Latinos do Oriente, uma síntese histórica, cultural e espiritual da sua Pátria, e Salazar e a revolução portuguesa. Regista o autor no seu Diário Português: «A história da revolução e da contra-revolução portuguesa não é desprovida de interesse e, especialmente, de utilidade para a Roménia.» Sobretudo para o general Antonescu, que no regime português se podia inspirar para um Estado autoritário, mas não totalitário.
A esse livro (que, confessa, escreveu com grande esforço), sacrificou outro que trazia em mente: Camões. Ensaio de filosofia da cultura. Foi-nos assim vedado um ensaio, certamente muito pessoal, sobre um tema que o fascinava: o das civilizações marítimas. Afinal de contas, o livro sobre «a revolução portuguesa» não produziu os frutos esperados: nem Antonescu se «converteu» ao modelo português nem Salazar terá apreciado, segundo informações que obtivera, a «heterodoxia» da interpretação eliadeana. Assim se compreende que personalidades afectas ao regime e do conhecimento de Eliade não tenham promovido a tradução do livro. Por seu lado, o estadista português delegou num secretário o agradecimento formal da oferta de Os Romenos, Latinos do Oriente, e de Salazar si revolutia in Portugalia, que certamente contribuiriam para um melhor conhecimento mútuo dos dois países. Tem pois de concluir-se que não foi de todo bem sucedida a estada de Eliade em Portugal. Se conheceu e conviveu com personalidades da literatura e da cultura portuguesas, se Grão-Vasco lhe revelou um realismo não convencionalmente renascentista, se certos lugares o fascinaram — o Terreiro do Paço, Cascais, em que viu o rosto da civilização marítima e a melancólica alma lusitana, e Óbidos, «a mais bela cidadela medieval» da Ibéria, não o conquistou, pelo seu próprio excesso, o manuelino. Como país periférico, Portugal vivia um pouco à margem da História e da Cultura. As livrarias de Lisboa não satisfaziam o seu apetite devorador, sobretudo em matérias não literárias. Para um homem de espírito criativo, era tarefa decerto rotineira compilar notícias, resumir artigos e toda essa parafernália que lhe exigia o cargo. E para um homem de estudo, sentia como uma perda de tempo os rituais da vida diplomática, como as recepções inevitavelmente mundanas. E a piorar tudo, a grave doença de sua mulher, que nenhuma terapêutica conseguiu debelar. Depois de longo sofrimento, falecia sua mulher, que em chão português descansou enfim, para sempre. Como se não bastassem as dores pessoais, as notícias da Roménia vinham agravar a sua angústia. A guerra, que conheceu a princípio espectaculares vitórias alemãs, tornou-se favorável à Rússia. Se, no dizer de um político polaco, com os Alemães se perdia a liberdade, com os Russos se perdia ainda a alma. Foi o que aconteceu à Roménia, com o regime comunista. Demitido do seu cargo e prevendo problemática a sua situação se regressasse a Bucareste, Eliade viveu em condições precárias o seu primeiro exílio de Paris.
Nas páginas íntimas do seu Diário Português (revelado, em 2001, por uma editora de Barcelona, que se ufanou dessa «primicia mundial»!), Mircea Eliade é por vezes crítico, mas não hostil ao nosso País. Em escritos mais públicos, memórias e entrevistas, não deixou de recordar, saudosamente, o nosso sol e o nosso Tejo, com um aceno de simpatia por um povo, não sem afinidades com o seu, ferido de nostalgia. Se houve indiferença e esquecimento, foi da nossa parte. Uma certa mentalidade tacanha impediu de reconhecer esse protagonista da cultura do século XX. Não lhe abriu as portas a universidade, convidando-o, por exemplo, para reger um curso de filosofia da cultura, nem (que saibamos) a Academia das Ciências de Lisboa se lembrou de o propor sócio correspondente estrangeiro. Doutor honoris causa por universidades europeias e americanas e membro de várias instituições culturais, nunca Eliade mereceu um galardão português. Como vencer o complexo provinciano que põe uma peneira para ocultar o mérito onde ele está? A atenção que prestámos a Eliade deve-se à iniciativa privada de editores que apostaram no autor do Tratado de História das Religiões e do Bosque Proibido, para citar dois dos títulos mais significativos da sua obra científica e da sua obra literária, que começaram a ser redigidos ainda em Portugal. No ano centenário do nascimento de Mircea Eliade, que ao menos nos seja dado ler em nossa língua o seu Diário Português.  
*Versão integral do texto publicado na ANNUALIA 2006-2007
NOTA: A tradução do Diário Português de Eliade será lançada no início do próximo ano.
publicado por annualia às 21:18
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