Uma imagem de Mircea Eliade (I)
por João Bigotte Chorão*

Toda a vida do escritor romeno (Bucareste, 1907 - Chicago, 1986) foi provada por vários dramas: o do «terror da História», o da oscilação entre a erudição e o da invenção romanesca, entre a orgia e a ascese. O «terror da História» é o que se abate sobre os povos, vítimas da guerra e da opressão de regimes inimigos do homem. O século XX, palco de duas guerras mundiais que tudo devastaram, vidas e bens materiais e morais (para não falar na Guerra Civil Espanhola e em conflitos em África e na Ásia), esse nosso admirável e progressivo século sofreu ainda totalitarismos que, como um moderno Leviatã, assombraram o destino de milhões de homens. Mircea Eliade viu, de perto ou de longe, o chão da Roménia pisado por Alemães e por Russos. No final da Segunda Guerra, teve mesmo de optar, como tantos outros, pelo exílio — e no exílio acabaria por morrer.
Em Londres, onde exerceu funções diplomáticas, assistiu a bombardeamentos que difundiram pânico, destruição e morte. Ao ver soltas as Bestas do Apocalipse, surgiu-lhe a expressão «terror da História» e uma outra — «morte colectiva». Morte, esta, que se nos tornou familiar, com o espectáculo repetitivo de furacões e de terrorismo. Numa página do Bosque Proibido — opus magnum do romancista —, temos a imagem de um abrigo antiaéreo onde, naquele ambiente de angústia, um homem, todo absorvido na leitura, parece alheado do que o rodeia. Intrigado, talvez até escandalizado, alguém lhe pergunta o que lê: os sonetos de Shakespeare. Se a morte vier, esclarece o tranquilo leitor, não matará um escravo, mas um homem livre: livre pelo espírito que doma o pânico da carne. Quem sabe se Eliade, que conhecia e admirava Camões (não pensou escrever um livro sobre ele?), teria presente a última estância do I Canto d’Os Lusíadas: «Onde pode acolher-se um fraco humano, /Onde terá segura a curta vida.» De precoce e insaciável curiosidade, não havia livros à medida da sua fome — livros das mais díspares matérias. Quando, enfim, dispôs de um espaço todo seu na casa paterna — a mítica mansarda, tão presente em escritos autobiográficos e na ficção (por exemplo, em Gaudeamus) —, pôde varar a noite, em sôfregas leituras, que lhe agravaram a miopia. Era a tentação do saber enciclopédico, e assim se percebe quer a atracção por Goethe quer o tema da sua tese de licenciatura — a filosofia do Renascimento. A vocação cultural que, na adolescência, se manifesta geralmente por tentativas literárias mais ou menos poéticas, revestiu no jovem Eliade formas insólitas de vulgarização científica, nos domínios da entomologia e da química. Mas não tardou que, ao findar o curso liceal, a propensão literária de Eliade se afirmasse em autobiografias ficcionadas, como o Romance do adolescente míope (publicado postumamente e que se julgava perdido). Nessa viragem, ou melhor, nessa redescoberta da vocação literária foi decisiva a leitura (em tradução francesa) de Un uomo finito de Giovanni Papini, essa como suíte sinfónica com que se identificou a juventude irrequieta de Eliade. Mais tarde, moderando juízos entusiásticos sobre o escritor italiano, não hesitou, porém, em considerar Un uomo finito «um testemunho espiritual de uma qualidade excepcional, único no seu género, e uma das obras mestras da literatura contemporânea».
A enorme erudição de Eliade não o fechou na mansarda estudiosa, para que não chegasse lá, senão atenuado, o ruído da rua. A sua necessidade de intervenção cultural encontrava na imprensa a tribuna para levar mais longe uma voz original e, não raro, polémica. Há quem julgue o jornal um meio inadequado a um «sábio» ou a um «filósofo», que não deve descer a «democratizar» a cultura. Não era esse o entendimento de Ortega y Gasset, que, em conversa com Eliade, lhe disse que via no jornal o prolongamento da aula — aula ao ar livre para um público mais numeroso. Mas o espírito insone de Eliade não lhe dava tréguas: era todo o contrário de um homem instalado. Escritor romeno imbuído da cultura europeia, a sua ânsia de conhecer novas terras leva-o até à Índia. Outras culturas, velhas civilizações acenam-lhe de longe, e, obtida uma bolsa de estudo, viaja para Calcutá. Estuda ioga, aprende sânscrito, estende a outros domínios a sua erudição. Os estudos especializados não o desviam da literatura. Na estação indiana conhece a filha do seu mestre e apaixona-se por ela. Se lhe inspira um belo romance de amor, La Nuit bengali, tem, no entanto, de afastar-se de Calcutá. Como o seu itinerário, também a ficção de Mircea Eliade não é linear — realista e fantástica, simbólica e retrato de uma geração, de uma sociedade e de uma época. Nesta última linha, os dois títulos eliadeanos mais significativos são Os Hooligans e Bosque Proibido. Com este ambicioso romance, o autor procurava recuperar, no Ocidente e no exílio, o prestígio literário que, nos anos 30, conquistara na Roménia. Obra complexa e de vastas proporções, de numerosas e ambivalentes personagens, de múltiplos planos e de acção repartida por vários lugares, entre eles Portugal, não teve porém a audiência que o autor legitimamente esperava.
Audiência, e muito larga, obteve o Tratado de História das Religiões, obra de referência que abriu portas a Eliade e outorgou o respeitável estatuto de «especialista» a um intelectual que perseguia a imagem renascentista do homem universal. Entre os grandes escritores que deram provas inequívocas de interesse pelo nosso País e a sua cultura, depois de Unamuno e de Eugenio d’Ors (a favor dos quais concorria a vizinhança ibérica) e depois de Valery Larbaud (com o seu largo cosmopolitismo intelectual), tem de apontar-se Mircea Eliade. Para isso contribuiu, além da sua curiosidade, a estada em Lisboa, de 1941 a 1945. Foram, como ele precisa, «quatro anos e sete meses de Portugal». Nel mezzo del cammin, Eliade teve de mudar de rumo. A morte prematura do seu mestre Nae Ionescu — mestre carismático de toda uma geração — deixou-o tão perturbado que escreveu: «Perdi o meu Mestre, o meu guia, encontrei-me ‘órfão’ no plano do espírito.» O sentimento de orfandade levou a que abandonasse a Universidade de Bucareste, onde era assistente de Ionescu. E à universidade só voltaria, mas em Chicago, nos finais dos anos 50. O clima político da Roménia tornara-se tenso, e essas duas circunstâncias — a pessoal e a colectiva — obrigaram Eliade a procurar fora de portas o ganha-pão. (continua)
*Texto publicado na ANNUALIA 2006-2007